Curso, percurso e transcurso de um corpo d’água: Rio Piraí - em busca de identidade

Élen Maria Gomes Cabral1



Resumo



O presente artigo visa refletir sobre a importância de um corpo d´água, o rio Piraí, enquanto “ícone de pertencimento” na construção da identidade cultural da população do município de Piraí-RJ, com o propósito de determinar elementos para ações afirmativas de cidadania. O curso do rio Piraí sofreu por duas ocasiões modificações significativas, provocando grandes mudanças ambientais e, conseqüentemente, profundas alterações socioculturais. Evocamos o rio como corpo d´água, sua história resgatada pela memória de seus sujeitos ambientais, sua sacralidade velada e desvelada pelas representações identitárias do mesmo, e fundamentalmente sua profanação ambiental. Faz-se necessário a ressignificação dos conceitos de corpo e de água. para enfocar o “corpo d´água” em seu devir sócio-cultural, seus cursos e seus percursos de territorialidade com o propósito de se construir uma nova realidade visando a qualidade de vida de sua população.

Palavras-chaves: Corpo d´água; mudanças ambientais; identidade cultural; cidadania

Abstract: The present article intends to reflect the importance of a body of water, the Piraí River, “icon of pertinence”, in the construction of the cultural identity of the population of the municipality of Piraí – RJ, with the purpose of determining elements for positive actions of citizenship. The course of the Piraí River suffered significant modification in two occasions, provoking great environmental changes, and consequently, profound socio-cultural alterations. We evoke the river as a body of water, its history redeemed by the memory of its environmental subjects, its sacredness, veiled and unveiled by its representations of identity, and fundamentally its environmental profanity. It is necessary to re-signify the concepts of body and water to focus the “body of water” in its becoming socio-cultural, it courses and routes of territory, with the purpose of constructing a new reality aiming at the quality of life of its population.

Key-words: Body of water; environment changes; cultural identity; citizenship.

                        

A volta ao corpo inicia uma nova busca pela identidade. O corpo aparece como um domínio secreto, para a qual só o indivíduo tem a chave, e ao qual ele ou ela pode voltar para procurar uma autodefinição liberta das regras e expectativas da sociedade. Nos dias de hoje, a atribuição social da identidade invade todas as áreas tradicionalmente protegidas pela barreira do “espaço privado” (Meluci, In. Guiddens, 1999, p. 201)


        O presente texto visa refletir sobre a importância de um “ícone de pertencimento” - o rio Piraí2 - na construção da identidade cultural de uma população residente no município de Piraí-RJ, com o propósito de trazer à tona elementos que possam contribuir para a determinação de ações afirmativas de cidadania tanto em âmbito governamental como na sociedade civil, organizada ou não.

        As identidades culturais são construídas culturalmente, isto é, organizadas em torno de um conjunto específico de valores cujo significado e uso compartilhado são marcados por códigos específicos de auto-identificação, como por exemplo, a comunidade de fiéis, os ícones do regionalismo e a geografia local. Centrando sua ênfase no sentido de pertencimento que alimenta as “redes sociais de solidariedade”, responsáveis pelo seu fortalecimento, o conflito pode aparecer, provocando um enfraquecimento dessas formas solidárias, exatamente pelo “não pertencimento” que estas identidades constroem ao redor, através de disputas de poder e de diversos preconceitos.

        Segundo Castells (1999, p 22), entende-se por identidade a fonte de significado e experiência de um povo, pois não se tem conhecimento de nenhum povo que não tenha nomes, idiomas ou culturas em que alguma forma de distinção entre o eu e o outro, nós e eles, não seja estabelecida, isto é, associada à necessidade de ser reconhecida também.

        O rio Piraí nasce no distrito de Lídice (município de Rio Claro-RJ) e é afluente da margem direita do rio Paraíba do Sul, sendo de grande importância para o Estado do Rio de Janeiro, já que faz parte do Sistema-Light, sendo ainda responsável por 96% do abastecimento de água do Sistema Guandu e por 20% da energia elétrica do município do Rio de Janeiro.

        Atualmente, o leito do Rio Piraí recebe águas de seus afluentes e do próprio rio Paraíba do Sul (águas vindas de inúmeros municípios do vale do Paraíba do Sul), trazendo toda a sorte de poluição para o rio, sofrendo uma poluição difusa, com o lançamento de esgotos “in natura” de inúmeras concentrações urbanas fluminenses, metais pesados, resíduos sólidos, e despejos industriais de quase setecentas indústrias ao longo do seu curso e percurso.

        O curso do rio Piraí sofreu por duas ocasiões alterações significativas no seu percurso: uma no início do século XX (1913), quando as águas próximas à montante foram desviadas (12 mil l/s média) por uma barragem construída em Tócos (município de Rio Claro-RJ) para alimentar a represa de Ribeirão das Lajes; e a outra em 1948, com a inversão do curso do rio seguida da transposição de parte das águas do Rio Paraíba do Sul à jusante na cidade de Barra do Piraí-RJ, alterando assim a foz do rio Piraí. Para tanto, foram construídas duas usinas elevatórias: Santa Cecília e a do Vigário, com o propósito de bombear água a uma altura de 50m e conduzir por mais dois outros reservatórios: Santana e do Vigário, no município de Piraí.

        A partir do conceito de corpo e de água – corpo d´água – tendo o rio Piraí como símbolo unificador de identidade cultural, buscamos uma ressignificação em torno desse “ícone de pertença” no seu curso e percurso como sagrado ou como profano, em seus desvios e transposições, em seus versos e reversos, em sua vida e morte, em sua territoridade. “O lugar é específico, concreto, conhecido, familiar, delimitado como corpo: o ponto de práticas sociais que nos moldaram e nos formaram e com as quais nossas identidades estão estreitamente ligadas” (Giddens, 2000 p 18).

        O controle regular do corpo é um meio fundamental através do qual se mantém uma biografia da auto-identidade, e, no entanto, ao mesmo tempo o eu está quase sempre em exibição para os outros em termos de corporificação. A necessidade de manejar esses dois aspectos do corpo simultaneamente, que se origina nas primeiras experiências da criança, é a principal razão por que uma sensação de integridade corporal – de que o eu está seguro no corpo – está tão intimamente ligada à apreciação regular dos outros. O que Goffman (apud Giddens, 1999, p 59) chama de “aparências normais” são partes dos conteúdos rotineiros da interação.

        Como o eu, o corpo não pode mais ser tomado como uma entidade fisiológica fixa, mas está profundamente envolvido na reflexividade da modernidade. O corpo era tido como um aspecto da natureza, governado de maneira fundamental por processos apenas marginalmente sujeitos à intervenção do homem. O corpo era um “dado” à parte, muitas vezes inconveniente, do eu. Com a crescente invasão do corpo pelos sistemas abstratos modernos, isso é alterado. O corpo como o eu torna-se o lugar da interação, apropriação e reapropriação, ligando processos reflexivamente organizados ao conhecimento especializado sistematicamente organizado. Pelas influências da alta modernidade ou da pós-modernidade o corpo está agora modificado, suas fronteiras se alteraram. Nas condições da alta modernidade, o corpo é na realidade muito menos “dócil” do que jamais foi em relação ao eu, tendo em vista que ambos estão intimamente coordenados dentro do projeto reflexivo da auto-identidade. O próprio corpo – mobilizado na práxis – torna-se mais relevante para a identidade que o indivíduo promove. A auto-identidade, examinada através dos sistemas internamente referidos do eu e do corpo, quando inteiramente penetrados pelos sistemas abstratos da modernidade, torna-se o lugar de uma variedade de novas opções de estilo de vida. Na medida em que é dominado pelas perspectivas centrais da modernidade, o projeto do eu continua sendo um projeto de controle, guiado apenas pela moralidade da “autenticidade”. As questões da “política da vida” estão centradas nos direitos da pessoa e do indivíduo, que por sua vez se ligam às dimensões existenciais da auto-identidade enquanto tal.

                        

Nas sociedades pré-modernas, o espaço e o lugar eram amplamente coincidentes, uma vez que as dimensões espaciais da vida social eram, para a maioria da população, dominadas pela presença – por uma atividade localizada. [...] A modernidade separa, cada vez mais, o espaço do lugar, ao reforçar relações entre outros que estão “ausentes”, distantes (em termos de local) de qualquer interação face-a-face. Nas condições da modernidade [...], os locais são inteiramente penetrados e moldados por influências sociais bastante distantes deles. O que estrutura o local é simplesmente aquilo que está presente na cena; a “forma visível” do local oculta as relações distanciadas que determinam sua natureza (Giddens, 1990, p. 18)


        Os lugares permanecem fixos; é neles que temos “raízes”. Entretanto o espaço pode sofrer modificações num piscar de olhos.

        Todas as identidades estão localizadas no espaço e no tempo simbólicos: suas “geografias imaginárias” (Said, 1990); suas “paisagens” características; seu senso de “lugar” e “casa/lar”, ou heimat; bem como suas localizações no tempo – nas tradições inventadas que ligam passado e presente, em mitos de origem que projetam o presente de volta ao passado, em narrativas de nação que conectam o indivíduo a eventos históricos nacionais mais amplos, mais importantes.

        O lugar (re)cria cultura, e ele o faz a partir de um cotidiano vivido, de modo distinto, mas, coletivamente, por todos. Este cotidiano é um reflexo das condições de cada lugar e tem suas raízes fincadas no trabalho em todas as modalidades. O lugar da comunidade que vive e interage cria uma identidade, fortalecem-se os processos de autonomia, de desejos, projetos, necessidades, sonhos e utopias éticas que fluem, ressignificando em cada época e em cada um.

        A memória coletiva é uma conquista, mas também um instrumento e objeto de poder. São sociedades cuja memória social é sobretudo oral ou que estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita que melhor permite compreender esta luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória (Le Goff, 1994, p. 476).

        Falar de identidade significa descobrir quem somos, quais são os nossos desejos, opiniões e aspirações. Sabemos que as identidades vão se constituindo através da internalização e da adoção de papéis e regras sociais que são transmitidas pela via de costumes, valores e tradições concretas. A identidade humana se constitui a partir do diálogo com “o outro”, com a sociedade. A noção de sujeito sociológico reflete a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que o núcleo interior do sujeito não é autônomo e auto-suficiente, mas formado na relação com outras pessoas importantes, para ele, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitam, numa concepção interativa da sociedade e do eu. A identidade é formada da interação entre o eu e a sociedade. O “eu real” é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais exteriores e as identidades que esses mundos oferecem. A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o “interior e o exterior” entre o mundo pessoal e o mundo público (Hall, 1999, p. 11).

        A identidade cultural é formada e transformada no interior das representações, sendo composta também de símbolos; é um discurso, um modo de construir sentidos que influenciam e organizam tanto nossas ações quanto a concepção de nós mesmos. Sentidos com os quais podemos nos identificar, construir nossas identidades.

        Todo meio de representação (escrita, pintura, desenho, fotografia, simbolização através da arte ou telecomunicações) deve traduzir seu objeto com dimensões espaciais e temporais, estando a identidade profundamente envolvida nesse processo de representação. Conseqüentemente, a moldagem e remoldagem da relação espaço-tempo no interior de diferentes sistemas de representação têm efeitos profundos sobre a forma, como as identidades são localizadas e representadas.

                        

O “poder” que fomenta e alimenta as identidades culturais emana da memória do sujeito coletivo desta identidade e provém de saberes compartilhados pelos seus indivíduos, cuja natureza é intangível, qual seja: o seu patrimônio cultural imaterial. [...] Em tempos do chamado “capitalismo cultural” ou “bio-capitalismo”, são as nossas paixões; os nossos desejos; a nossa afetividade e a nossa religiosidade, ou seja: o material imponderável de nossa subjetividade, o bem mais precioso a ser acumulado (Fonseca, 2003, p 15-16).


        Com este propósito evocamos um corpo d’água, o rio Piraí, sua história resgatada pela memória de seus sujeitos ambientais, sua sacralização velada e desvelada pelas representações sociais identitárias do mesmo e, fundamentalmente, sua profanação ambiental. Faz-se necessário a ressignificação dos conceitos de corpo e de água, para então enfocarmos o corpo d´água em seu devir sócio-cultural, seus cursos e seus percursos de territorialidade.

        O corpo e a água são territórios do sagrado. A sabedoria judaico-cristã ajuda a viver o corpo como um templo. O corpo humano é imagem e semelhança de Deus, sendo um território do sagrado (Miranda, 2002, p 12).

        A concepção de corpo vem perdendo sistematicamente os seus nexos simbólicos com a imanência do sagrado (Fonseca, 2004, p 85). Torna-se necessário o conhecimento de “fala do corpo” da cabeça aos pés. Trata-se de uma memória a ser despertada, de uma fala que deve ser ouvida; escutar o corpo como território do sagrado: “a solicitação e a manipulação de nossos corpos e sentimentos pós-mecanismos de consumo, projetos materialistas e embates competitivos nos afastam de nós mesmos e distancia-nos de nossa identidade profunda”. (Miranda, 1998, p 22)

        O homem das sociedades arcaicas vivia perto das coisas sagradas; o território que ele habitava era o mundo, obra dos deuses indefinidamente repetida, recuperável e reconstruída ritualmente. Era sua responsabilidade colaborar com a recriação do cosmos, garantindo a vida de plantas e animais, a fim de não desequilibrar a natureza. Já o homem das sociedades modernas só tem compromisso com o histórico e o social; o universo não representa o cosmos, e tudo é tratado como recursos capazes de serem explorados economicamente.

        Nas sociedades tradicionais, o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contém e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturadas por práticas sociais recorrentes (Giddens, 1990, p 37-8). Na modernidade, existem ondas de transformação social que virtualmente atingem toda a superfície da Terra e a natureza das instituições sociais. Para Havey (1990) existe um rompimento total com a condição precedente num processo sem fim de rupturas e fragmentações. As sociedades estão sendo “descentradas” ou “deslocadas” por forças fora de si mesmas, numa pluralidade de centros, perdendo assim seu centro organizador.

        Para Laclau, o deslocamento desarticula as identidades estáveis do passado, mas também abre possibilidades de novas articulações: a criação de novas identidades, a produção de novos sujeitos e o que ele chama de “recomposição da estrutura em torno de pontos modais particulares de articulação.” (Laclau, 1990, p 40).

        Pode-se afirmar que o sujeito do iluminismo (Hall, 1999) era visto como tendo uma identidade fixa e estável, a qual foi descentrada, e deslocada, o que resultou em identidades abertas, fragmentadas, contraditórias, inacabadas, do sujeito pós-moderno.

        O pensamento científico, a dúvida sistemática, a noção de um progresso crescente e a ênfase na dimensão racional, tão próprios das sociedades modernas, substituem o modo de viver e de sentir do sagrado, expresso numa relação com algo que ultrapassa o indivíduo e está, reconhecidamente, fora do seu domínio. A individualização toma o lugar do princípio do respeito, o outro é um opositor, e o funcionamento da sociedade vai repousar sobre relações concorrenciais e competitivas. O tempo histórico é o tempo da vigência do profano, e o “ver para crer” é a sua regra. O olhar investigador e que pressupõe a desconfiança sistemática é o olhar do profano que endeusa o conhecimento objetivado e tudo quer explicar pela lógica. A vida se transforma em mero conhecimento ou em retalhos de conhecimento.

        As pessoas resistem ao processo de individualização e atomização, tendendo a agrupar-se em organizações comunitárias que, ao longo do tempo, geram um sentimento de pertença e, em última análise, em muitos casos, uma identidade cultural, comunal (Castells, 1999, p 79) . Assim como Castells, acredito que se faz necessário um processo de mobilização social, isto é, as pessoas precisam participar de movimentos urbanos, pelos quais são revelados e defendidos interesses em comum, e a vida é, de algum modo compartilhada e um novo significado pode ser produzido. É importante considerar três conjuntos de metas principais: necessidades de condições de vida e consumo coletivo; afirmação da identidade cultural local e conquista da autonomia política local e participação na qualidade de cidadãos. As comunidades locais construídas por meio da ação coletiva e preservadas pela memória coletiva, constituem fontes específicas de identidades, como reação defensiva contra as condições impostas.

        Para Hall (1999), sempre houve uma tensão entre as identidades que se representam através de vínculos de pertencimento com os lugares, eventos, símbolos, histórias particulares e as identificações mais universalistas com a humanidade.

        A continuidade e a historicidade da identidade são questionadas pela imediatez e pela intensidade das confrontações culturais globais.

        O projeto sócio-cultural da modernidade aparece como extremamente complexo e contraditório, extremamente rico pela sua diversidade, com inúmeras possibilidades, mas, segundo Santos (2001, p 76-77), exatamente por essa razão, contemplam tanto o excesso das promessas como o déficit do seu cumprimento. Esse projeto constituiu-se entre o século XVI e finais do século XVIII, porém somente a partir do final deste referido século e meados do século XIX que efetivamente passa a acontecer, mediante a especificidade histórica do capitalismo enquanto modo de produção dominante na Europa que integrava a grande onda de industrialização. A partir deste momento, o trajeto histórico do projeto de modernidade está intrinsecamente ligado ao desenvolvimento do capitalismo nos países centrais.

        Na segunda metade do século XX, o desempenho da memória coletiva é “revalorizado” tornando-se de grande importância para o estudo e compreensão das modernas sociedades.

                        

Exorbitando a história como ciência e como culto público, ao mesmo tempo a montante enquanto reservatório (móvel) da história, rico em arquivos e em documentos/monumentos, aval, eco sonoro (e vivo) do trabalho histórico, a memória coletiva faz parte das grandes questões das sociedades desenvolvidas e das sociedades em vias de desenvolvimento, das classes dominantes e das classes dominadas, lutando todas pelo poder ou pela vida, pela sobrevivência e pela promoção (Le Goff, 1994, p 475, grifos da autora)


        A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar de identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia (ibid). Le Goff ainda convoca os profissionais científicos da memória, tais como antropólogos, sociólogos, historiadores, jornalistas, a fazerem uma luta pela democratização da memória social, um dos imperativos prioritários da sua objetividade científica.

        A tese de Castells (1999) tem como principal objeto de estudo as revolucionárias tecnologias de informática e comunicação que surgiram nas três últimas décadas do século XX. Ele aponta que, assim como a Revolução Industrial deu origem à sociedade industrial, assim também a Revolução da Informática está dando origem à sociedade da informação. A informática desempenhou um papel decisivo na ascensão das ligações em rede, como nova forma de organização da atividade humana nos negócios, na política, nos meios de comunicação e nas organizações não-governamentais, também chamadas de “sociedades em redes”.

        Vivemos hoje num mundo de complexidades, de tecnologias, de “tessituras”, onde sobrevivem e tomam sentido e significado as reflexões filosóficas das identidades culturais, da biotecnologia, da comunicação eletrônica, da globalização. Tempos de “hibridação” do mundo: de tecnolização da vida e economização da natureza, de mestiçagem de culturas, de diálogos de saberes, de dispersão de subjetividades em que se está desconstruindo e reconstruindo o mundo, em que estão ressignificando identidades e sentidos existenciais, na contracorrente do projeto unitário da modernidade saturada e uma pós-modernidade que começa a desabrochar sem saber ainda como se definir e/ou decifrar.

                        

As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como sujeito unificado. Assim chamada crise de identidade, vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social (Hall,1999, p 7)


        O próprio processo de identificação em que projetamos nossas identidades culturais, tornou-se provisório e problemático: o sujeito pós-moderno.

        O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós, há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções em que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas.

        Na medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, ao menos temporariamente.

        A relação entre o moderno e o pós-moderno é contraditória, situação de transição onde há rupturas e continuidades. “Paradigma emergente é o intersticial no modo como se pensa e pensa-se sempre mergulhado na realidade dos contextos em que se pratica (histórias paralelas umas as outras). O novo paradigma propõe os conhecimentos e as práticas não hegemônicas.” (Santos, 2001, p. 103).

        No estudo das relações entre os processos naturais e sociais a questão da interdisciplinaridade aparece como desafio, oferecendo uma visão integradora da realidade num processo de reconstrução social através de uma transformação do conhecimento ambiental. O saber e a racionalidade ambiental incluem novos princípios teóricos e novos meios instrumentais para reorientar as formas de manejo da natureza. Esta é sustentada por valores como qualidade de vida e identidades culturais, no sentido da existência, abrindo um diálogo entre o saber a ciência, entre a tradição e a modernidade. A hibridação cultural produz novas significações sociais, novas formas de sustentabilidade e de posicionamento diante do mundo. Surgem novos atores sociais povoando este cenário, exigindo novas formas autogestionárias de organização, ocasionando assim, a construção de projetos alternativos de desenvolvimento em nível local. Propõe-se uma forma inovadora para recuperar as identidades coletivas e reintegrar as comunidades no espaço econômico-político de cada nação, a partir dos seus direitos e da reapropriação de seu patrimônio de recursos materiais e imateriais, para aproveitá-los em benefício próprio numa busca de ressignificação do mundo contemporâneo, com novas práticas políticas, econômicas, ideológicas, acadêmicas e científicas, que enriquecem a cultura democrática.

        Coloca-se assim, a necessidade de uma estratégia que permita articular e complementar os processos econômicos em nível macro com os diversos espaços micro, de maneira que a identidade sócio-cultural, a autonomia cultural e a autogestão econômica possam reforçar-se mutuamente, fortalecendo as iniciativas de desenvolvimento local.

        Sociologicamente, toda identidade é construída a partir de um quê, por quem e para quê. Acontecem como matéria-prima para a construção das identidades: a história, a geografia, a biologia, as histórias produzidas e reproduzidas pela memória coletiva, por fantasias pessoais, pelo aparato de poder e revelações de cunho religioso. As sociedades reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social no tempo e no espaço. As identidades coletivas são, em grande medida, os determinantes do conteúdo simbólico da identidade sócio-cultural, bem como de seu significado para aqueles que como ela se identificam ou dela se excluem. Cada tipo de construção de identidade dá origem a uma série de instituições.

                        

As identidades também podem ser formadas a partir de instituições dominantes, mas somente quando os atores sociais as internalizam, construindo seu significado com base nessa internalização. As identidades são fontes mais importantes de significados do que os papéis, por causa da autoconstrução e individualização que as envolvem. As identidades são organizadas pelos significados e os papéis são organizados pelas funções do significado. (Castells, 1999, p 23)


        Castells afirma ainda que a construção social da identidade sempre ocorre num contexto marcado pelas relações de poder e propõe três formas e origens dessa construção: a identidade legitimadora (instituições dominantes), a identidade de resistência (atores em posições desvalorizadas ou estigmatizadas) e, por fim, a identidade de projetos (quando os atores utilizam-se de qualquer tipo de material cultural para a construção de uma nova identidade)

        A primeira dá origem a uma sociedade civil, ou seja, um conjunto de organizações e instituições, bem como uma série de atores sociais estruturados e organizados que, embora, às vezes, de modo conflitante, reproduzem a identidade que racionaliza as fontes de dominação estrutural. Foram estas estruturas que perderam seu caráter de manter vivos os valores das pessoas. Acredito também no caráter complexo da sociedade civil na concepção formulada por Gramsci, em que esta sociedade é constituída de uma série de “aparatos”: sindicatos, partidos, igrejas, cooperativas, entidades cívicas que, se por um lado prolongam a dinâmica do Estado, por outro, estão arraigadas entre as pessoas. A conquista do Estado pelas forças de mudança presentes na sociedade civil torna o terreno privilegiado de transformações políticas organizados em torno de uma identidade.

        A segunda identidade leva à formação de comunidades de resistência (as chamadas minorias), geradas por agentes sociais que se encontram em posição de exclusão, sob discriminação ou que se sintam ameaçados. Talvez seja a mais importante em nossa sociedade, a partir de uma identidade defensiva nos termos das instituições/ideologias dominantes, revertendo o julgamento de valores e, ao mesmo tempo, reforçando os limites dessa resistência, mas com o risco de fragmentarem-se em uma constelação de “tribos”, fecharem-se em suas próprias redes identitárias limitando a sua capacidade de ação. Para Castells, as identidades de resistência deveriam se transformar em identidades de projeto.

        A terceira produz sujeitos como atores sociais coletivos em que os indivíduos atingem o significado holístico em sua experiência. A construção da identidade passa a ser um projeto de uma vida diferente, talvez com base em uma identidade oprimida, mas expandindo-se no sentido da transformação da sociedade, como prolongamento desse projeto de identidade. Uma identidade de projeto se constrói quando os agentes sociais tratam de redefinir a sua própria posição na sociedade, a partir de legados culturais a que tiverem acesso (Castells, 1999, p. 425-427). A respeito das redes sociais de solidariedade estabelecida, Fonseca relata sua experiência em diferentes comunidades onde identifica pelo menos quatro formas de funcionamento sistemático no interior destas comunidades: as redes familiares; as redes religiosas; as redes geográficas (vizinhança); e as redes de interesses compartilhados. Aponta que cada uma destas comunidades possui uma lógica de integração entre os seus membros e um código de conduta – uma ética – que garante a sua fortaleza como sujeito coletivo; legitima a cada um dos seus membros e define os limites desta identidade, definindo também os seus não-membros, ou seja: os seus excluídos. O núcleo duro do poder que emana destas formas de associação tem a ver com o “sentido de pertencimento” que elas oferecem e se apresenta sob a forma de aceitação, solidariedade e lealdade. No interior destas formas de existir na comunidade, a capacidade de resistir dos seus indivíduos será tanto maior, quanto mais estruturados estiverem os códigos éticos daquela rede, independentemente do valor dos seus conteúdos (Fonseca, 2003, p.16-17).

        Não há como negar que o trabalho de resgate do patrimônio imaterial de uma determinada região, sua revalorização no interior da própria comunidade e sua ressignificação para a inclusão na principal corrente cultural pode servir, com sucesso, às comunidades no “re-conhecimento” da sua principal vocação.

        Na exploração/compreensão do conceito de identidade cultural acredito ter sido bastante enriquecedor o diálogo e a reflexão fundamentados nas formulações prático-teóricas de Stuart Hall, Hobsbawm, Anthony Guiddens, Santos, Castells, Le Goff, Miranda e Fonseca.

        Gostaria de destacar os conteúdos formulados por Castells no tocante a importância do poder que alimenta as identidades culturais que emana da memória do sujeito coletivo, da identidade que provêm de saberes compartilhados pelos indivíduos, pela afetividade, pela subjetividade, pelo intangível: o seu patrimônio imaterial (Estes também foram assumidos por Fonseca). Le Goff também ressalta a importância da memória coletiva: “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens” (Le Goff, 1994, p. 477).

        Evoco ainda as idéias de Castells acerca da fragilidade das identidades de resistência quando se isola na própria rede identitária. Por este motivo, para garantir a sua efetividade, “as identidades de resistência” precisam também se transformar em “identidades de projeto”. Partilho também dessas mesmas idéias.

        Existe a necessidade de se buscar os reflexus da modernidade, para se construir os nexus da/na pós-modernidade numa grande rede de solidariedade, com grandes amplexus, na construção de sentidos coletivos e identidades compartilhadas que constituem significações culturais diversas na perspectiva de pensar o por vir. Para se estabelecer o vínculo entre o ser e o pensar, questionando o pensamento com (am)plexidade ambiental.

        Em coerência com as minhas propostas iniciais, trago à tona as questões levantadas por Fonseca no que se refere à importância da formação de um “núcleo duro” do poder das redes sociais de solidariedade através do “sentido de pertencimento”. E quando de sua ausência, ou seja, do “não pertencimento”, surgem os conflitos e desentendimentos, disputa pelo poder e toda a sorte de preconceitos.

        E finalmente faço uso de uma metáfora:

                        

O rio representa a sociedade; a sua correnteza, o paradigma dominante; o curso do rio, o processo histórico. Em que para mandarmos o rio (sociedade), precisamos interferir na correnteza (paradigma) do seu curso (processo histórico). Como fazer se não quero ser carregado pela correnteza? Começar a nadar contra a correnteza ou nadar até a margem para ficar ali me segurando? Nestas duas tentativas individualizadas o esforço de resistir sozinha é muito penoso e, com o cansaço, a tendência é me acomodar e me deixar levar pela correnteza. Uma terceira alternativa seria criando uma contra-correnteza como um movimento coletivo, conjunto de resistências; isso poderá resultar em toda uma alteração dinâmica hidrológica desse rio, alterando a velocidade e força do rio, transformando sua capacidade erosiva, de transporte de sedimentos, entre outros. Isso significa que precisamos mergulhar nessa correnteza paradigmática, construir esse movimento coletivo conjunto, que tenha sinergia para resistir e que, nessa contraposição (luta hegemônica), busquemos alargar as brechas e contradições da estrutura dominante, fragilizando-a, para assim interferirmos na construção de uma nova realidade (totalidade dialética) (Guimarães, 2004, p. 29-30).



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SANTOS, Boaventura de Souza (org.) Globalização. Fatalidade ou utopia? Porto: Afrontamento, 2001.




1Mestranda em serviço social na PUC-Rio.
2Piraí em Tupi-Guarani significa rio dos peixes.